Entrevista realizada pro Paulo Henrique Amorim com o reitor José Vicente, da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo. A Entrevista foi publicada no site Conversa Afiada
A cor da pele tem influência, sim, na profissão e na ascensão profissional.
Esta é a opinião de 71% dos entrevistados numa pesquisa do IBGE, que ouviu moradores de 15 mil domicílios e pessoas de mais de 15 anos de idade.
Sobre esse assunto, eu conversei no programa Entrevista Record Atualidade, da Record News, com o reitor José Vicente, da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, que tem 1.700 alunos e cinco cursos: administração, direito, publicidade e tecnologia dos transportes.
José Vicente passou a infância no Morro do Querosene, em Marília, no interior de São Paulo, foi bóia fria, e estudou.
Estudou Direito, Sociologia e Política.
José Vicente também é membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. E lá no Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, que reúne figuras do país inteiro, entre empresários e professores, cientistas e economistas, que discutiu o programa que a presidenta Dilma Rousseff lançou recentemente, o “Ciência sem Fronteiras”.
José Vicente – A discussão no nosso país e no mundo inteiro é como produzir tecnologia, como produzir cérebros, como agregar valor ao produto. Isso só se faz com mais conhecimento, com mais qualificação e com a identificação de talentos que possam ser qualificados. O Brasil percebeu que é necessário produzir mão de obra qualificada. E, com isso, criou um programa que prevê 75 mil bolsas de estudos por parte do Governo, 25 mil por parte da iniciativa privada. Com isso, mandaríamos 100 mil jovens para as melhores universidades do exterior. De modo que, daqui a cinco anos, teríamos de volta estes quadros altamente qualificados, que nos auxiliariam a melhorar a nossa tecnologia, melhorar o nosso produto.
- Mas aí, José Vicente, surge um pequeno problema. Tem certeza de que eles voltam? Ou vai acontecer com esses jovens o que aconteceu com os indianos, com os chineses, que foram para a Califórnia e ficaram lá no Vale do Silício produzindo pra Microsoft, para Apple …
José Vicente – Essa preocupação é latente e o programa pretende criar mecanismos, que diminuam essa possibilidade, ou que excluam definitivamente. Mas o dado é que é, ainda que corrêssemos o risco de perder parte desses cérebros, os que retornariam seriam suficientes para preencher esse vácuo. Quer dizer, vamos perder 20%, mas teríamos 80% de cérebros qualificados. Isso é um dado. E, segundo, o programa deverá prever nas contrapartidas um mecanismo que evite ou que desencoraje …
- Nós vivíamos aqui no Brasil um período - você se lembra – que era de fuga de cérebros.
José Vicente – Agora, o momento é outro. Essa quebradeira nos Estados Unidos e na Europa, pode ser que muitos os cérebros tenham interesse em voltar pra casa, porque aqui está melhor do que lá.
Vamos falar deste tema que é uma pesquisa do IBGE. Ela mostra que para 71% dos entrevistados, a cor da pele influencia a profissão que a pessoa tem e a possibilidade de ascensão profissional. Você é reitor, você que fundou esta faculdade …
José Vicente – Eu, dentre outras pessoas, sou um dos fundadores da Zumbi dos Palmares.
Na Zumbi dos Palmares 50% das vagas são dedicados a alunos afrodescendentes. Qual é a lição que você extrai dessa pesquisa do IBGE ?
José Vicente – Essa pesquisa é uma tradução literal do que era o Brasil antes, do que é o Brasil hoje, e das dificuldades que ainda temos para superar. Reflete algumas percepções estruturantes do nosso país. A questão de raça é latente, ela tem um impacto terrível na vida de todas as pessoas, dos negros em especial, mas seguramente dos brancos, porque essa é uma relação dual. Se não é bom para o negro, não pode ser bom para o branco. E ela produz um prejuízo terrível para o nosso país. E nós, a despeito de termos tido todos esses avanços econômicos que nos colocam aí entre as potências financeiras e econômicas, nós não conseguimos dar um salto nas soluções para problemas desta natureza. Hoje se substitui aquele ‘boa aparência’ por uma regra não dita em que as estatísticas colocam bem claro que o obstáculo está posto, ele existe e é difícil de ser transposto.
A Zumbi dos Palmares foi fundada em 2002 e ela formou a primeira turma em 2004.
- E qual é a experiência que você já adquiriu, desde 2004, com esses jovens que se formaram com você? Que tipo de obstáculos eles tiveram na vida profissional depois de sair da faculdade.
José Vicente – Muitos deles tiveram muita sorte. Muitos deles tiveram sucesso e muitos conseguiram seguir sem tantas dificuldades. Mas a grande maioria continua tendo dificuldades significativas. Tanto no acesso ao mercado de trabalho, quanto na manutenção no mercado de trabalho, quanto na ascensão profissional. Então, o fato é que nós temos um problema estrutural. Temos alguns bolsões em que, apesar dos limites, apesar dos obstáculos, as pessoas conseguem se encaminhar. Mas são a exceção que só confirma a regra. A exceção é só exceção.
- E o que faz com que o aluno que se forma na sua faculdade, negro, suba tanto quanto o branco? E qual a diferença?
José Vicente – A diferença é quando ele toma consciência de que existe obstáculo, que o obstáculo é real, e que o obstáculo, para ser superado, precisa de algumas estratégias. E que possível superar obstáculos, se você quiser, se você se preparar e se você se lançar. A gente brinca sempre que a Zumbi dos Palmares é uma fábrica de lançadores. A gente lança as pessoas pro ar e diz pra ele: “Você tem que se jogar”. Entendeu? Porque o obstáculo está aí justamente pra ser transposto. E você pode transpor este obstáculo se você acreditar, se você trabalhar, se você tiver disciplina, se você acreditar e, fundamentalmente, se você arriscar.
- Quais são as estratégias que você recomenda?
José Vicente – A primeira delas é ter uma consciência da identidade. “Eu sou negro e me orgulho disso, eu tenho uma trajetória histórica em que todos aqueles que me antecederam foram negros. Eu sou negro e me orgulho disso, porque os negros construíram esse e tantos outros países. Inclusive o Brasil e, portanto, este é um Brasil meu também. E eu sou negro e me orgulho disso e esse país é meu também”. De modo que com esses elementos – identidade, consciência cultural e a consciência de direitos enquanto cidadão – eles passam a ter armas que não tinham. E com essas armas nas mãos ele pode fazer a diferença no dia-a-dia, quer denunciando, quer conhecendo, quer trabalhando pra mudar os números que aí estão.
- Você diria que um ingrediente fundamental nesta estratégia de ascensão é ser um bom aluno, é se qualificar profissionalmente? Ou às vezes isso só não basta?
José Vicente – Não basta ser só bom aluno. É indispensável que você possa ser um bom aluno, mas você tem que ser um bom cidadão. Você tem que ser um bom filho, você tem que ser um bom indivíduo, você tem que ser um indivíduo útil para a pessoa, para a sociedade e para todas as coisas. Então, eu acho que esse conjunto de valores, poderá até não fazer tão necessário o diploma. Mas é indispensável que você tenha esses valores, e, com o diploma, você possa ascender. Senão você vai ser só mais um profissional. E você precisa ser um bom profissional, mas fundamentalmente, um extraordinário cidadão.
José Vicente, você tocou num ponto que me deixou intrigado. Você disse que essa questão de superar o preconceito é ruim para o negro, mas é ruim para o branco também…
José Vicente - É ruim para o país, para a Nação, para o mundo. Você sabe que o que nós estamos perdendo de vidas neste exato momento no Chifre da África. É uma coisa inadmissível do ponto de vista dos valores humanitários, milhares de homens, mulheres e crianças estão morrendo nos campos de concentração da Somália, simplesmente porque não tem comida pra comer. No Quênia, neste exato momento, deve ter uma morte diária de mil pessoas. Gente que não tem casa, que não tem teto, que não tem comida, que não tem assistência médica. E que lida com o problema da Al-Qaeda, que ainda realiza esse trabalho terrível, o terrorismo, e que não deixa que a ajuda humanitária chegue. Mas se você sair do Chifre da África e for para os demais países da África, a situação não é muito diferente. Aliás, não é por outro motivo que a Organização das Nações Unidas declarou esse ano o ano do Afrodescendente.
E quando você chega aqui no Brasil, em que 53% dos brasileiros se auto-declaram negros, você vai perceber que esses 53% dos brasileiros só estão do lado de fora. Eles não estão do lado de dentro. Aliás, foi uma discussão que permeou o projeto Ciência Sem Fronteiras, porque a hipótese era de que “olha, nós precisamos encontrar alunos da elite” e o recorte tem que ser por mérito. E, para buscar essa elite, nós vamos buscar nas 50, nas 30 maiores universidades mais importantes do país. Nas 30 maiores universidades mais importantes do país não tem um aluno e nem um professor negro. Fruto da divisão estrutural em razão do racismo, da discriminação racial. Então, no Brasil, temos isso que acompanha os 350 anos de Escravidão. Nós temos uma lei que pune a discriminação racial, que pune o racismo. Nem com isso nós conseguimos ainda subverter esses dados.
- Fazer um avanço significativo…
José Vicente – Não conseguimos. Porque quando impedimos – por obstáculos formais ou artificiais – o acesso de um contingente tão grande à produção nacional, perdemos valor agregado, nós perdemos capacidade de produção, nós perdemos produtividade e nós perdemos oportunidade de ter cérebros aqui mesmo.
- E perdemos em humanismo …
José Vicente – Do ponto de vista dos direitos humanos, nem se fala. Mas do ponto de vista do viés econômico, que é a medida do momento, se todos os países, a grande batalha hoje é pelos cérebros, o nosso país é o único que se dá ao luxo de jogar metade dos seus cérebros na lata do lixo. Simplesmente porque não teve ainda capacidade de criar mecanismos que integrem negros e brancos na produção.
- Mas alguns alunos da Faculdade Zumbi dos Palmares, seguramente, vão estudar em Harvard…
José Vicente – Vamos trabalhar para que isso seja possível.
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