Adotado há dez anos para tentar aumentar a diversidade étnica dos diplomatas
brasileiros, o programa de ação afirmativa do Ministério de Relações Exteriores
não conseguiu pôr fim ao desequilíbrio entre negros e brancos no órgão.
Dentre todos os 741 diplomatas que ingressaram na carreira desde 2002, quando
a política começou a ser implantada, somente 19 (ou 2,6%) são negros que se
beneficiaram das bolsas concedidas pelo programa.
O Itamaraty diz não saber qual a composição racial de seus 1.405 diplomatas.
Até 2010, o órgão nunca havia tido um diplomata de carreira negro no cargo de
embaixador, o mais alto posto na hierarquia do ministério.
O programa concede bolsas anuais para que candidatos "afrodescendentes
(negros)", conforme a definição do ministério, se preparem para o concurso
público para o Instituto Rio Branco, que forma os diplomatas brasileiros.
Nos últimos dez anos, foram distribuídas 451 bolsas a 268 candidatos, dos
quais a maioria recebeu o benefício mais de uma vez.
Bolsas anuais
Única política de ação afirmativa racial na administração pública federal, o
programa do Itamaraty foi idealizado durante o governo FHC (1995-2002). Ao
defender a medida, o então presidente afirmou que "precisamos ter um conjunto de
diplomatas – temos poucos – que seja o reflexo da nossa sociedade, que é
multicolorida e não tem cabimento que ela seja representada pelo mundo afora
como se fosse uma sociedade branca, porque não é".
Os beneficiados são escolhidos após uma série de provas e uma entrevista.
Nela, apresentam-se a uma banca que inclui representantes da Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e da Fundação Palmares – a
etapa visa evitar que não negros obtenham a bolsa.
Cada bolsista ganha anualmente R$ 25 mil. Ao menos 70% do valor deve ser
empregado na compra de livros, pagamento de cursos preparatórios e professores
particulares.
O ingresso na carreira diplomática é um dos concursos mais concorridos do
país e oferece uma das carreiras públicas com salário inicial mais elevado, de
R$ 12.962,12.
'Fracasso absoluto'
Para José Jorge de Carvalho, professor de antropologia da Universidade de
Brasília e especialista em políticas afirmativas, os resultados do programa do
Itamaraty revelam "um fracasso absoluto".
"O número de aprovados talvez pudesse ser alcançado mesmo sem a medida", diz
ele à BBC Brasil. "Nesse ritmo, em 100 anos não mudaremos a composição racial do
Itamaraty".
Para reverter o quadro, Carvalho defende que o órgão imponha uma cota de, no
mínimo, 20% de vagas para candidatos negros.
Atualmente, conforme determina a legislação para concursos públicos, o órgão
já aplica cotas para deficientes físicos (5% das vagas).
Segundo o professor, a adoção de cotas raciais no Itamaraty estimularia uma
maior procura do concurso por negros. "Hoje muitos estão convencidos de que o
Itamaraty não é para eles."
Já para o diplomata Márcio Rebouças, coordenador do Programa de Ação
Afirmativa do Instituto Rio Branco, a iniciativa mudou a percepção de que o
Itamaraty é um órgão elitista.
"Se num passado longínquo isso foi verdade, não é mais", afirma. "Hoje o
ministério valoriza a diversidade étnica, regional e acadêmica dos seus
quadros", acrescenta.
Para ele, o número de aprovados pelo programa "poderia ser maior, mas isso
não é uma de suas funções imediatas".
Rebouças faz uma avaliação "muito positiva" da medida. Ele diz que todos os
bolsistas aprovados se integraram bem na carreira e que alguns já se encontram
em posição de destaque no ministério.
Além disso, ele diz crer que os candidatos negros que ingressaram no
ministério desde a implantação da política afirmativa não se restringem aos
bolsistas. "Nem todos os aprovados usaram a bolsa", afirma. "As turmas são muito
misturadas, são um espelho do Brasil", acrescenta.
O diplomata cita ainda um "efeito colateral" da política que considera
positivo: "Uma grande quantidade de pessoas que participam do programa não
consegue passar, mas termina conseguindo outros cargos públicos, em parte em
razão da bolsa".
Reserva de vagas
Desde 2011, o Itamaraty incorporou outra ação afirmativa à seleção de
diplomatas. O órgão passou a aprovar, para a segunda fase da prova, 10% a mais
de candidatos em grupo integrado exclusivamente por bolsistas negros.
O contingente não inclui candidatos negros (bolsistas ou não) que obtenham
pontuação suficiente para passar à segunda fase dentro da lista geral.
A reserva de vagas na seleção não garante a classificação dos candidatos.
Depois da primeira fase, as notas são zeradas, e a seleção segue com provas de
português, geografia, história, política internacional, direito, economia,
inglês e uma segunda língua (espanhol ou francês).
O novo procedimento não elevou o número de candidatos negros aprovados. Em
2011, apenas um bolsista foi selecionado; em 2012, dois. Os três, porém, teriam
se classificado independentemente da reserva de vagas, já que passaram à segunda
fase na lista geral.
Desde que a ação afirmativa foi adotada na seleção do Itamaraty, 2009 foi o
ano em que mais bolsistas se classificaram, com quatro selecionados. Em 2005,
nenhum ingressou.
O número de vagas em cada concurso variou bastante no período. O ano de 2002
teve a menor oferta de postos, com 30. Entre 2006 e 2010, foram criadas 105
vagas, número que saltou para 108 em 2011. Desde então, foram 26 vagas em 2011 e
30 neste ano.
Nos próximos anos, espera-se que a quantidade de vagas volte a crescer, já
que o Senado aprovou a criação de 400 novos cargos de diplomata no Itamaraty. A
decisão visa responder à crescente presença diplomática do Brasil no exterior,
acompanhada pela abertura de dezenas de embaixadas brasileiras nos últimos
anos.
Segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), 7,6% dos brasileiros se consideram pretos, e 43,1%, pardos.